Confiança, gênero e saúde mental
- Paulo Henrique Mai

- há 3 dias
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A confiança em si mesmo é um dos pilares da saúde mental. Quando ela se fragiliza, costuma aparecer na forma de sintomas como fobia social, ansiedade, retraimento e depressão. Mas é importante lembrar algo que estamos sempre repetindo em nossas postagens: confiança não nasce pronta, ela se constrói.
E essa construção não acontece no vazio; acontece nas relações, em comunidade, dentro de estruturas sociais que moldam profundamente quem podemos ser. E, nesse ponto, o gênero não é um detalhe, é um eixo central.

Desde muito cedo, pessoas nascidas em corpos masculinos recebem estímulos diretos para ocuparem espaço: serem assertivas, decididas, confiantes. Esse repertório é socialmente lido como sinal de competência e liderança.
Já meninas costumam ser educadas para serem leves, agradáveis, acolhedoras, flexíveis; qualidades que frequentemente vêm acompanhadas da mensagem implícita de que não devem ser “demais”: não muito firmes, não muito diretas, não muito seguras.
O resultado é uma régua marcada pela assimetria:
A confiança masculina é valorizada.
A confiança feminina é frequentemente lida como inadequada, agressiva ou uma forma de ameaça.
Trata-se do mesmo comportamento, da mesma frase, do mesmo tom de voz, do mesmo gesto, no entanto, recebe leituras completamente diferentes dependendo de quem o realiza. Há aí uma distorção social, não biológica.
As diferenças biológicas existem, negar isso seria simplista, mas, na prática, as repercussões dessas diferenças são, inclusive, desconsideras por estruturas sociais muito mais determinantes sobre o que cada pessoa “pode” ou “não pode” ser.
Um exemplo histórico ilustra bem isso: em sociedades caçadoras-coletoras, há cerca de 10 mil anos, mulheres que estavam gestando ou amamentando tinham menor mobilidade e acompanhavam menos as caçadas. Essas mulheres, durante os períodos da vida em que não saíam para caçadas, desenvolveram e organizaram aquilo que viria a ser a agricultura, uma revolução econômica que remodelou a vida humana.
Ou seja: características femininas contribuíram decisivamente para a evolução das sociedades. No entanto, hoje, apesar de toda essa origem, é mais comum que a gestão da terra, do dinheiro e das estruturas de poder esteja nas mãos de homens. A biologia não explica isso; a cultura explica.
O que tudo isso tem a ver com saúde mental?
Quando a sociedade faz com que a confiança feminina seja percebida como inadequada, isso produz culpa, silenciamento e retração. Gera um custo psíquico que aparece no consultório como ansiedade, exaustão, baixa autoestima, síndrome da impostora, depressão.
Do outro lado, o incentivo permanente para que homens se mostrem fortes e autossuficientes gera outro tipo de sofrimento: dificuldade de pedir ajuda, repressão emocional, isolamento, explosões de raiva, medo de vulnerabilidade.
Gênero atravessa a forma como adoecemos e a forma como podemos nos cuidar.
Se queremos uma clínica comprometida com autonomia, integralidade e saúde mental, é preciso reconhecer que confiança não é só uma característica individual, é um produto social. E isso implica:
compreender como expectativas de gênero modulam sintomas;
legitimar a experiência subjetiva dos pacientes frente às normas sociais;
trabalhar o fortalecimento da confiança como prática relacional e comunitária;
acolher o impacto das desigualdades estruturais no sofrimento psíquico.
Uma clínica que deseja empoderar pessoas é, inevitavelmente, uma clínica que discute gênero. Porque só entendendo o contexto que molda a confiança é que conseguimos ajudar alguém a reconstruí-la, não como exigência moral, mas como caminho de liberdade.
Agradeço a médica de família e comunidade Natália Pierdoná por fomentar os debates que propiciaram a elaboração dessa publicação. A Natália Pierdoná é médica, e se especializou no cuidado de mulheres com sintomas de saúde mental como ansiedade e depressão.
Paulo Henrique Mai
Médico de Família e Comunidade
CRM-BA 48.425 - RQE




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